MP 1.202/2023 – Reoneração da folha

2 de janeiro de 2024

A MP 1.202/2023, publicada em 29/12, altera as regras de desoneração da contribuição previdenciária sobre a folha de salários, que favorecia algumas empresas, para estabelecer a progressiva retomada da tributação normal sobre elas. Com isso, em lugar de serem tributadas sobre a receita, elas voltarão a ser tributadas sobre a folha, mas com alíquotas reduzidas. Além disso, essas alíquotas reduzidas serão aplicadas somente sobre o salário de contribuição do segurado até o valor de um salário-mínimo, aplicando as alíquotas normais sobre o valor que ultrapassar esse limite.

Em nossa avaliação, a MP é questionável juridicamente neste assunto, por algumas razões.

Em primeiro lugar, não são atendidos os requisitos para adoção de medida provisória, constantes do art. 62 da CF/88, de relevância e urgência. Realmente. O Congresso Nacional havia debatido a prorrogação da desoneração da folha, aprovou projeto de lei nesse sentido, derrubou o veto presidencial em 14/12 e o Presidente do Senado promulgou a Lei nº 14.784 em 27/12 estabelecendo a prorrogação da desoneração. Em outras palavras, há todo um quadro fático sobejamente conhecido e que vinha sendo analisado e discutido. Não há nenhum imprevisto, que necessite ser urgentemente regrado. Há, somente, o inconformismo do Executivo com a decisão do Congresso Nacional.

Em segundo lugar, a CF/88, ao tratar das medidas provisórias, veda “a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo”.

O objetivo da regra é facilmente identificado. O Congresso e o País não podem ficar presos à vontade do Executivo. A competência para estabelecer normas gerais e abstratas, próprias de serem veiculadas por leis, é do Congresso. A competência do Executivo é excepcional, na forma de medidas provisórias. Por isso, se o Congresso já decidiu certa matéria – rejeitando MP expressamente – não cabe ao Executivo tentar impor sua vontade por meio de nova MP.

Esse mesmo racional deve ser aplicado em outras hipóteses, embora distintas formalmente, mas que apresentem o mesmo cenário em substância (é o velho ditado: “Onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito”). Afinal, a Constituição, norma genérica que é (mesmo prolixa como a CF/88), não consegue prever todas as situações. Logo, impõe-se a atenção fiel à teologia do enunciado constitucional, principalmente quando envolvida questão central na Constituição, como a divisão de poderes.

Se o Congresso se manifestou sobre um tema explicitamente, como acontece ao aprovar uma lei e, ainda mais, derrubar veto da Presidência, pretender sobrepor a manifestação do Congresso com uma MP (dentro da mesma sessão legislativa/ano) é arrogar-se na posição de poder impor a vontade do Executivo ao Congresso e ao País.

Vale observar que mesmo os integrantes do Congresso não gozam de plena autonomia para pretender superar a manifestação legítima e soberana do Congresso sobre um tema. Daí que o art. 67 da CF/88 só autoriza que matéria constante de projeto de lei rejeitado constitua objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.

As exigências orçamentárias vigentes podem e devem ser observadas. No entanto, elas não autorizam que sejam ignoradas normas constitucionais, seja pela violação direta, seja pela contrariedade ao seu objetivo, de modo a tentar transparecer a obediência a norma, quando na verdade ela é contrariada em seu espírito/objetivo.

Em terceiro lugar, a MP traz a previsão de que as alíquotas da contribuição previdenciária sobre as remunerações serão reduzidas “sobre o salário de contribuição do segurado até o valor de um salário mínimo, aplicando-se as alíquotas vigentes na legislação específica sobre o valor que ultrapassar esse limite” (parágrafo único do art. 1º). Como se percebe, é feita uma diferenciação no tratamento tributário: a remuneração até um salário-mínimo terá menor tributação que a remuneração superior a esse patamar.

Ora, regra com esse teor é uma agressão ao princípio da igualdade. Segundo as lições de C. A. Bandeiro de Mello (segundado por H. Ávila), para que uma diferenciação seja aceita juridicamente, entre outros pontos é necessário que a diferenciação prestigie os valores, princípios e regras constitucionais ou, quando mesmo, que sejam compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional.

Entretanto, o que a MP faz é desincentivar a maior remuneração dos trabalhadores brasileiros. Doravante, as empresas alcançadas pela nova lei e que concederem melhores remunerações a seus empregados serão penalizadas com maior tributação. Ocorre uma inversão dos valores constitucionais: em lugar do fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e do objetivo fundamental de erradicar a pobreza e reduzir desigualdades (art. 3º, III), tem-se o incentivo via tributação à manutenção de salários baixos.

Em conclusão, ao estabelecer a reoneração sobre a folha de salários, a MP incide em variadas inconstitucionalidades: não há respaldo no art. 62 para a adoção de medida provisória, ao contrário, a MP 1.202/2023 contraria esse dispositivo constitucional, além de atentar contra a isonomia.

A Advocacia Lunardelli se encontra à disposição para maiores esclarecimentos.

Atenciosamente,

Jimir Doniak Jr.

Sócio – Tributos Diretos

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