Informamos que em 05/01 foi publicada a Portaria Normativa MF nº 14/2024, que: “Estabelece limites para utilização de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgada para compensação de débitos relativos a tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil”.
Trata-se da regulamentação da Medida Provisória nº 1.202/2023, que alterou a Lei nº 9.430/1996 e criou limitação à compensação de indébitos tributários decorrentes de decisão judicial. Esse novo tratamento tributário foi objeto de nossos comentários no Informativo publicado em 02/01/2024. Na ocasião, além de apontarmos diversos fundamentos para concluir no sentido de esse novo tratamento contrariar a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional, também alertamos para a necessidade de ato normativo a ser expedido pelo Ministério da Fazenda para complementar a Medida Provisória.
A Portaria Normativa tem justamente esse objetivo. É ela quem, de fato, estabelece não só os limites para a compensação de indébitos, como também a própria sistemática de funcionamento desse novo regime legal de compensação de indébitos.
Assim, o § 1º estatui que “(…) o valor mensal a ser compensado fica limitado ao valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação dividido pela quantidade de meses, (…)”. A partir daí deve ser identificado qual inciso será aplicado, para saber a quantidade mínima de meses para a compensação:
- Os créditos cujo valor total seja inferior a R$10milhões poderão ser compensados sem limites.
- Os créditos cujo valor total seja de R$10milhões a R$99.999.999,99 deverão ser compensados no prazo mínimo de 12 meses, quer dizer, não poderão ser compensados em prazo menor.
- Os créditos cujo valor total fique no intervalo entre R$100milhões e R$199.999.999,99 deverão ser compensados no prazo mínimo de 20 meses.
- Os créditos cujo valor total fique entre R$200milhões e R$299.999.999,99 deverão ser compensados no prazo mínimo de 30 meses.
- Os créditos cujo valor total fique entre R$300milhões e R$399.999.999,99 deverão ser compensados no prazo mínimo de 40 meses.
- Os créditos cujo valor total fique entre R$400milhões e R$499.999.999,99 deverão ser compensados no prazo mínimo de 50 meses.
- Por fim, os créditos cujo valor total seja igual ou superior a R$500milhões deverão ser compensados no prazo mínimo de 60 meses.
É viável retirar algumas conclusões desse novo regime:
- O cálculo para identificação do limite de compensação parte do crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado. A nosso ver, se infere que não deve ser considerado o quadro global do contribuinte.
Por isso, pode acontecer de uma empresa ter um indébito tributário decorrente de uma decisão judicial no valor, digamos, de R$8milhões e outro indébito derivado de outra decisão no montante de R$9milhões. Ainda que o indébito total seja de R$17milhões, cada indébito é inferior a R$10milhões, o que faz com que ela não esteja submetida a qualquer limite. Outro exemplo: a empresa tem três indébitos, cada um no valor R$80milhões, perfazendo o total de R$240milhões. O limite de compensação é de 12meses (aplicável a indébitos de valores inferiores a R$100milhões) e não de 30meses.
- O cálculo é feito tomando como base o valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação. Portanto, imaginemos um exemplo, no qual o valor do crédito originalmente fosse de R$90milhões, mas ao ser atualizado quando da primeira compensação, esteja em R$120milhões. O prazo mínimo será de 20 meses e não de 12 meses.
- O § 1º não se limita a fixar o prazo mínimo. Ele também determina que o valor mensal a ser compensado fica limitado ao valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação dividido pela quantidade de meses mínima. Assim, no exemplo antes imaginado de um indébito de R$120milhões a ser compensado em 20 meses, ocorrerá a compensação de R$6milhões por mês (120/20). Pelo que se infere da literalidade da Portaria, esse montante de R$6milhões será fixo, quer dizer, não será modificado durante o período de compensação.
Ocorre que durante esse período de 20 meses o indébito deverá ser atualizado. Não faz sentido que não o seja e não existe nenhuma regra afastando sua atualização. Todavia, não há previsão de como será feita a compensação do valor relativo à atualização do indébito ao longo do período de compensação (que poderá chegar a longos 60 meses, que são 5 anos).
No entender da Advocacia Lunardelli, trata-se de omissão ou falha na regulamentação. É possível que a Portaria tenha sido somente mal escrita. Assim, o valor mensal a ser compensado seria o valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração, dividido pela quantidade de meses mínima, adicionado da atualização apropriada para cada mês. De outro lado, é igualmente possível que o Ministério da Fazenda tenha desejado impor que a atualização durante o período de compensação ocorra somente após o prazo mínimo fixado na Portaria. Se essa foi a intenção, deveria ter sido prevista regra clara.
Acreditamos que o Ministério da Fazenda ou a Receita Federal deverão esclarecer este ponto (até por meio dos sistemas de compensação). Se a intenção foi de negar a atualização do indébito durante o período de compensação, haverá nova irregularidade passível de questionamento.
- Eventualmente, se a pretensão do Ministério da Fazenda foi a de que a atualização do indébito durante o período de compensação só seja compensável após o término do prazo mínimo de compensação, isso significa que foi afastado o entendimento anterior da Receita Federal de que a compensação deve ser realizada no prazo máximo de 5 anos, sob pena de decadência. Isso porque a própria legislação estaria, em alguns casos (indébito superior a R$500milhões) obrigando a que a compensação se dê em prazo superior aos 5 anos (os 60 meses de prazo acrescido de ao menos um novo período para compensar a atualização do indébito durante o período de compensação). Todavia, o prazo de decadência previsto no CTN (na interpretação da Receita Federal) não é revogável por uma medida provisória que limita o direito à compensação. Nota-se, aí, mais uma incongruência desse novo regime de compensação.
- A Portaria confirma nossa impressão inicial, exposta no Informativo antes mencionado, no sentido de a Medida Provisória nº 1.202/2023 contrariar não só a Constituição Federal, mas também o artigo 170 do CTN. Isso porque, nos termos desse dispositivo, é a lei quem pode, nas condições e sob as garantias que estipular, autorizar a compensação. Trata-se de competência, que envolve um poder, mas também um dever (daí a expressão doutrinária de dever-poder). Não cabe à lei (ou à MP, com a força transitória de lei) omitir-se e passar essa função para o Executivo.
Como se infere da Portaria Normativa MF nº 14/2024, é ela quem está autorizando a compensação, pois estabelece a forma como ela poderá ser feita e seus limites. Quem poderia fazer isso (a se entender aceitável a limitação à compensação) é lei, não uma portaria. A essa caberia apenas viabilizar a fiel execução da lei (arts. 84, IV, e 87, II, da CF/88) e não estabelecer, ela própria, o próprio regime de compensação e suas restrições.
- Não está claro se o novo regime de compensação, com seus limites, é aplicável inclusive a um indébito tributário decorrente de decisão judicial anterior à MP 1.202 e à habilitação e que já esteja sendo compensado. Um novo exemplo: a empresa obteve decisão judicial transitada em julgado em junho de 2023, em agosto calculou o indébito e apresentou habilitação de R$200milhões, começou a compensação em novembro de 2023, remanescendo em janeiro de 2024 um indébito de R$150milhões. A Portaria se omite em relação a situações como essa.
Há três opções: (a) o novo regime não seria aplicável, pois ele abrangeria somente decisões judiciais transitadas em julgado a partir da MP 1.202; (b) o novo regime seria aplicável e a identificação do limite consideraria o valor do indébito remanescente em janeiro de 2024; (c) o novo regime seria aplicável e a identificação do limite retroagiria, para considerar o valor do indébito quando do início da compensação (no exemplo, em novembro de 2023).
A falta de regulamentação sobre esse importante ponto reforça a sensação de decisão adotada de afogadilho, sem o necessário cuidado prévio.
A redação da MP sugere que o regime toma como base a compensação decorrente de decisão judicial transitada em julgado. A conclusão, então, tenderia a ser o alcance de qualquer compensação posterior à MP, não importa a data da decisão judicial transitada em julgado. A Portaria tem redação um pouco distinta. Fala da utilização de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado para compensação. O foco parece estar na decisão judicial. Essa impressão é reforçada pelo fato de ser considerado o valor atualizado até a data da primeira declaração de compensação e também frente à ausência de regulamento para essas hipóteses.
A opinião da Advocacia Lunardelli, então, é no sentido de o Ministério da Fazenda ter optado por não aplicar o novo regime a indébitos homologados no passado (antes da MP) e que já tenham sido objeto de primeira compensação. Caso a Receita Federal venha a forçar a adoção do novo regime a indébitos já habilitados em com a primeira compensação já realizada antes da MP, há base para questionamento judicial.
Como se pode perceber, a Portaria Normativa traz regras essenciais para viabilizar o novo regime de compensação de indébitos tributários (a ponto de se afirmar ser ela – e não a MP – quem institui esse novo regime), mas deixa diversos pontos obscuros.
Por isso, as considerações aqui feitas devem ser consideradas a partir desse panorama inicial. Novas regras ou manifestações oficiais podem levar a modificações em nossa opinião.
De qualquer maneira, a Portaria Normativa reforça a manifestação inicial da Advocacia Lunardelli de que a limitação à compensação de indébitos tributários é passível de questionamento judicial.
Permanecemos à disposição.
Atenciosamente,
Jimir Doniak Jr.
Sócio – Tributos Diretos