A MP nº 1.202, publicada em 29/12, também limita a compensação de indébito tributário decorrente de decisão judicial transitada em julgado.
Foi adicionado o art. 74-A à Lei nº 9.430/1996. Ele estabelece que a compensação observará o limite mensal estabelecido em ato do Ministro da Fazenda. Além disso, esse limite: (i) será graduado em função do valor total do crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado; (ii) não poderá ser inferior a 1/60 do valor total do crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado; (iii) esse limite mensal de compensação não será estabelecido para crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado cujo valor total seja inferior a R$10milhões.
Como se percebe, a execução desse novo regime ainda requer norma do Ministro da Fazenda.
Supõe-se que o Executivo entendeu que essa medida teria amparo no art. 170 do Código Tributário Nacional – CTN. Segundo ele, a lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos do sujeito passivo contra a Fazenda Pública. Ou seja, enquanto no direito privado a compensação seria automática (Código Civil: “Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”), no direito tributário a compensação só seria viável nos termos definidos em lei. Tanto seria assim que a compensação do indébito tributário só se tornou corriqueira com as Leis nºs 8.383/1991 e 9.430/1996, e já envolveu condições no passado.
Ainda assim, entendemos que o limite estabelecido é questionável juridicamente, seja sob o prisma constitucional, seja em razão do mencionado art. 170 do CTN.
Em primeiro lugar, a lógica da compensação parte da premissa de que as posições de credor e de devedor ao mesmo tempo, das duas partes, levam à extinção das obrigações. Com efeito, não há racional para uma parte A pagar sua dívida à parte B, para em seguida B pagar à A.
Esse tratamento é acolhido em relações privadas não só por uma questão de eficiência econômica. Explica Carvalho Santos que também se fundamenta na equidade, pois não é justo que uma pessoa tenha que pagar seu débito a quem não lhe paga seu crédito. Daí o velho adágio romano, segundo o qual age com dolo quem pede o que deve dar. Inspirado nessa concepção histórica, o STF afirmou recentemente que a compensação “(…) não é apenas medida de justiça, mas mecanismo de justiça eficiente” (ADI 4.357, Min. L. Fux).
O valor que inspira a compensação adquire novo colorido quando envolvida relação jurídica entre partes desiguais, com uma em posição privilegiada (por alguma razão) e de maior força frente à outra.
É o que se passa na relação entre o Estado e o contribuinte. Inegável a posição privilegiada e de maior força do Estado. Ele elabora as leis e as aplica pela Administração. Em relação entre partes desiguais, aquela em posição privilegiada se submete a deveres especiais, como a submissão ao princípio da moralidade (art. 37, “caput”) e o maior rigor em relação à boa-fé objetiva. Não só. O Estado não tem interesses próprios. Seus interesses são (devem ser) os da sociedade. Sobrepor interesses arrecadatórios ao dever de adimplir seus débitos com os particulares é ignorar os interesses da sociedade, agindo em má-fé e sem atenção ao princípio da moralidade.
Em segundo lugar, a restrição à compensação contraria a isonomia. Com efeito, a MP impõe desigualdade de tratamento: credora e devedora, a União concede a si própria o benefício de receber seus créditos no prazo, mas só adimplir seus débitos no futuro, de modo parcelado. Já o contribuinte, igualmente credor e devedor, deve adimplir seus débitos de imediato, para só receber seus créditos no futuro, de modo parcelado. A contrariedade à isonomia é patente.
O Estado, que já ocupa posição privilegiada e de maior força, (ab)usa da possibilidade de adotar normas gerais e abstratas para exigir o recebimento de seus créditos, ao mesmo tempo em que protela o pagamento de seus débitos. Em substância, o que a MP faz é instituir irregular moratória a favorecer o Estado inadimplente, em prejuízo do cidadão/contribuinte.
Em terceiro lugar, o quadro é ainda mais grave, pois o crédito do contribuinte (o indébito tributário) foi discutido e garantido no Judiciário. O contribuinte recolheu tributo indevido no passado, passou anos em litígio e ao final o Judiciário reconheceu seu direito. A negativa à compensação frustra ou quando menos retira a executividade da coisa julgada, em violação ao art. 5º, XXXVI, da CF/88.
Não só isso. Em quarto lugar, é inegável que a instituição do direito à compensação representou avanço na proteção ao contribuinte e nas boas relações tributárias. Tratamento que caminha em direção ao fundamento da cidadania (art. 1º, II) e aos objetivos de construir uma sociedade justa e promover o bem de todos (art. 3º, I e IV), além da observância do princípio da justiça tributária (posto pela EC 132/2023 no § 3º do art. 145).
De acordo com consistente jurisprudência do STF, a Constituição e o ordenamento jurídico não são um quadro estático, mas um corpo em movimento, no “processo de concretização constitucional” (Canotilho). De tal maneira que normas infraconstitucionais no sentido dos valores e princípios constitucionais configuram realização da Constituição. A revogação dessas normas contraria o princípio da vedação do retrocesso social: a Constituição impede que sejam desconstituídas, pela revogação e/ou alteração de normas, conquistas já alcançadas pelos cidadãos via normas infraconstitucionais.
Assim, sendo cristalina que a ampla compensação entre créditos e indébitos tributários é uma conquista dos particulares/cidadãos no sentido da concretização da Constituição, ela não pode ser revogada sem ferir a vedação do retrocesso constitucional.
As irregularidades continuam.
Em quinto lugar, cabe lembrar as diversas tentativas de o Poder Público protelar o pagamento de suas dívidas, normalmente por meio da mudança de regime de pagamento de precatórios. Consistentemente, o STF condena essas práticas.
A mais recente manifestação se deu no julgamento em 1º/12/2023 da ADI 7.064, a respeito da Emenda Constitucional nº 114/2021. Ela havia prescrito a postergação do pagamento de precatórios a partir de certo valor (“teto”). Essa postergação “(…) ensejou o sacrifício de direitos individuais do cidadão titular de um crédito em face do poder público, abalando sobremodo a legítima confiança nas instituições violando os efeitos da coisa julgada que foi favorável aos credores”. Não só: “O represamento dos pagamentos, além de onerar desproporcionalmente o interesse de cada credor, apenas posterga o problema para o exercício seguinte ao desfecho da moratória concedida pela EC 114”.
A medida adotada na MP 1.202 é a mesma da EC 114/2021, que foi condenada pelo STF: represar o adimplemento das dívidas do Poder Público, em prejuízo do particular/contribuinte, apenas postergando um problema, em violência aos direitos individuais e em sacrifício da legítima confiança.
Em sexto lugar, o limite criado pela MP 1.202 não tem respaldo nem mesmo no art. 170 do CTN. Realmente, mesmo partindo dele, não se deve desbordar de seus termos.
É certo que o art. 170 prevê que a lei pode autorizar a compensação e para tanto fixar as condições e garantias. Condição é a qualidade, estado ou circunstância requerido ou necessário para algo. Assim, pode-se condicionar a compensação a que crédito tributário e indébito sejam de tributos da mesma espécie, como já foi no passado. Todavia, limitar quantitativamente o valor da compensação não é fixar condição.
Percebe-se, então, que o CTN dá competência à lei para autorizar a compensação e fixar condições. Autorizada a compensação e cumpridas eventuais condições, há direito à compensação. O legislador ordinário não goza de competência para restringir o direito do contribuinte, limitando-o quantitativamente. Por isso, o novo art. 74-A da Lei nº 9.430/1996 também não encontra respaldo no art. 170 do CTN.
Por fim e em sétimo lugar, a MP 1.202 traz delegação ao Ministro da Fazenda para que ele estabeleça limites à compensação. Ainda que se admita que o art. 170 do CTN permite a restrição da compensação, esse dispositivo é claro ao estabelecer que cabe a lei dispor sobre a compensação (há delegação à autoridade administrativa somente para estipular eventuais garantias à compensação). Logo, o que o CTN determinou que cabe a lei fazer não pode ser delegado à Administração. A aprovação de leis não é mero poder, simples opção, no sentido de faculdade a ser exercida se assim for escolhido. Trata-se de encargo, de dever. Por isso, a delegação para o Ministro da Fazenda estabelecer o limite mensal de compensação não é constitucionalmente aceitável, além de contrariar o art. 170 do CTN.
Sendo afastado o “caput” do novo art. 74-A da Lei nº 9.430/1996, não cabe pretender aplicar seus parágrafos, como se tivessem vida própria além do “caput”. Os parágrafos expressam aspectos complementares à norma enunciada no “caput” (art. 11, III, “c”, da LC 95/1998). Não é possível complementar o nada. A consequência é que as disposições contidas nos parágrafos não sobrevivem à inconstitucionalidade e à ilegalidade do “caput”.
Não só isso. O STF vem analisando e afastando normas por falta de densidade normativa (ADIs 1.600, 4.120 e 5.835). Realmente, a norma jurídica tem pretensão de eficácia, de aplicabilidade. Para tanto ela deve ter densidade suficiente (deve ser completa o suficiente) para que possa ser aplicável. Se há omissão sobre aspectos necessários para sua aplicação, o dispositivo normativo não logra aplicação.
No caso, o § 1º, inciso I, do novo art. 74-A estatui que o limite de compensação será graduado em função do valor total do crédito decorrente de decisão judicial. Na ausência da ilegal e inconstitucional delegação contida no “caput” do art. 74-A, não se sabe como será tal graduação (nem quem a fará). O resultado é que o limite à compensação carece de condições de aplicabilidade, por falta de densidade normativa.
Por essas diversas razões, a despeito da previsão contida no art. 170 do CTN, somos de opinião de que o limite à compensação de débitos é passível de questionamento judicial, para que seja afastada, de modo a viabilizar as compensações sem limites.
Observamos que essa medida da MP 1.202 é particularmente grave, dado sua aplicabilidade imediata.
A Advocacia Lunardelli permanece atenção ao tema e à regulamentação que deverá ser expedida pelo Ministério da Fazenda, assim como está à disposição para os esclarecimentos que se façam necessários.
Atenciosamente,
Jimir Doniak Jr.
Sócio – Tributos Diretos