Saldo credor de ICMS: dever ou faculdade do Fisco utilizá-lo no auto de infração

12 de junho de 2023

Em breve será julgado na 1ª Turma do STJ o ARESP nº 1.821.549/SP [1], que tem por objetivo decidir se no auto de infração a fiscalização deve ou não considerar o saldo credor do ICMS havido pelo contribuinte. O acórdão recorrido, oriundo do TJ/SP [2], entendeu inexistir este dever. Outrossim, afirmou que a utilização do saldo credor seria faculdade do contribuinte ao efetuar o lançamento por homologação, cabendo ao fisco apenas sua “conferência”.

Com o devido respeito, este argumento não se sustenta.

A uma razão, porque o artigo 142 do CTN não contempla faculdade de o fisco aplicar ou não a regra da não cumulatividade prevista na CF/1988, assim como na LCF n 87/96. Tampouco apenas “conferir” se está correto ou não o lançamento do contribuinte.

O fisco cumpre um e somente um dever: aplicar a lei e, se desta aplicação, resultar algo cobrável, que se faça a devida exigência mediante o devido processo legal. O dever é uno: aplicar a lei! Inexiste faculdade para tanto. É dever!

Neste sentido, o inciso III do artigo 24 da LCF nº 87/1996 prevê que o saldo credor de um período será transportado para o período seguinte. Não se tem neste dispositivo que o valor deste saldo será transferido para o período subsequente unicamente pelo contribuinte. A prescrição é clara: destina-se a qualquer operador da regra da não cumulatividade; seja o fisco, seja o contribuinte, portanto.

A duas, antes da própria extinção do saldo devedor mediante pagamento em dinheiro (inciso I, artigo 156, CTN c/c inciso II, artigo 24, LCF nº 87/96), os débitos de ICMS liquidam-se por compensação a ser feita com créditos do mês de regência, somados ao saldo credor do período anterior (inciso I, artigo 24, LCF nº 87/96). E, novamente, não se constata nestes mandamentos qualquer distinção sobre quais operadores da não cumulatividade deverão efetuar tal compensação, o que impõe concluir que tanto o fisco, quanto o contribuinte estão obrigados a fazê-la.

A três, a própria 1ª Turma do STJ, ao julgar o Resp nº 773.675/SP e o AgRg no Resp nº 1.065.234/RS, já deu os contornos necessários da norma da não cumulatividade, afastando do seu perfil qualquer critério facultativo para a sua aplicação, quer seja pelo contribuinte, quer pelo fisco. É, nas letras do respectivo acórdão, direito cogente a ser obrigatoriamente observado por quem a ela se sujeita; e esta sujeição atinge tanto o contribuinte, quanto o fisco.

A quatro, a doutrina de escol, já de há muito, tem posicionamento assente no sentido destes julgados, como se verifica das lições de Paulo de Barros Carvalho [3]:

“O primado da não-cumulatividade é uma determinação constitucional que deve ser cumprida, assim por aqueles que dela se beneficiam, como pelos próprios agentes da Administração Pública. E tanto é verdade, que a prática reiterada pela aplicação cotidiana do plexo de normas relativas ao ICM e ao IPI consagra a obrigatoriedade do funcionário, encarregado de apurar a quantia devida pelo ‘contribuinte’, de considerar-lhe os créditos, ainda que contra sua vontade”.

A cinco, pelo prisma constitucional, a orientação do STF está devidamente alinhada a esta posição do STJ e da melhor doutrina nacional. Isto, aliás, há décadas, conforme se verifica do entendimento da 2ª Turma ao julgar o REX nº 111.757/SP, cujo seguinte trecho do voto condutor do acórdão vale transcrever:

“(…)

    1. Conforme os precedentes desta Corte, ‘não disse o constituinte que se abateria o montante pago, mas, imperativamente, o valor cobrado ou exigível nas operações anteriores. Não se trata de mera preferência gratuita por uma expressão ou outra, mas conseqüência necessária do antecedente‘não será cumulativa’. Os sucessivos contribuintes devem, para efeito de calcular o imposto devido pela operação de saída da mercadoria do seu estabelecimento, abater o que antes e, a título idêntico, dever-se-ia ter pago, a fim de evitar a oneração em cascata, ou cumulativa, da coisa tributada’. E prosseguiu o relator desse julgado: ‘(…) O creditamento não é faculdade do contribuinte, mas dever para com a ordem jurídica objetiva, tanto que não lhe é possível renunciar ao lançamento do crédito do imposto, ainda quando isto lhe fosse conveniente. Nem a lei poderia autorizá-la a tanto, sob pena de inconstitucionalidade. (…) Não pode, pois, a Fazenda do Estado de São Paulo (…) impedir que a recorrente lance a seu crédito o montante que está sendo cobrado pela operação anterior. Glosar o crédito que não corresponda ao efetivamente exigível, sim. Mas este não é o caso”.

Esta orientação foi, inclusive, reafirmada pela 1ª Turma da Suprema Corte quando do julgamento do AgRg REX nº 239.632-1/RS.

Portanto, o que se espera do julgamento que se avizinha é que a regra da não cumulatividade seja aplicada tal qual esta moldura, impondo ao fisco o invariável dever de considerar os respectivos saldos credores do ICMS quando efetuar o lançamento tributário.


[1] O recurso está com pedido de vista da Exma. Ministra Regina Helena Costa realizado em 01/05/2023, conforme noticia a página do STJ em consulta feita em 05/06/2023, às 20:02h. https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202100108950&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea

[2] Apelação nº 1050134-25.2018.8.26.0053 – SP, julgado em 20/02/2020 pela 8ª Câmara de Direito Público.

[3] Regra Matriz do ICM, obra inédita, 1981. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/8025. Consulta em 06/05/2023, às 19:08h. Este posicionamento doutrinário, aliás, foi expressamente incorporado à sentença proferida pela 1ª Vara da Comarca de Pirassununga, Estado de São Paulo, nos autos do Processo nº 0002639-56.2015.8.26.0457.


Esse texto foi publicado original no Conjur.

 

Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli

Sócio – Tributos Indiretos

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