Receita Federal acirra desigualdade entre homens e mulheres

27 de fevereiro de 2023

Entendimento do fisco pela tributação do salário-maternidade vai contra diretrizes do texto constitucional

A sociedade brasileira tem evoluído, ainda que de forma tímida, para diminuir as diferenças entre homens e mulheres, especialmente no campo do direito. Com a Constituição de 1988, evidencia-se de forma clara no texto constitucional o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres[1], não apenas em direitos e obrigações, mas também em diversos campos da sociedade. O texto constitucional estabelece ainda diretrizes para a redução das desigualdades entre homens e mulheres.

As conquistas alcançadas pelas mulheres no campo do texto constitucional decorrem da luta dos movimentos femininos que são detalhadamente apresentados pela professora Flávia Piovesan no artigo “Igualdade de gênero na Constituição Federal: os direitos civis e políticos das mulheres no Brasil”.[2]

Nesse sentido de ideais, o texto constitucional, visando possibilitar a inserção da mulher no mercado de trabalho em condições de igualdade com o homem, estabeleceu um tratamento diferenciado para as mulheres, especialmente para a gestante, objeto de estudo do presente artigo.

Referida proteção encontra fundamento na concessão de licença à gestante, sem prejuízo de seu salário, pelo período de 120 dias[3], como forma de equilibrar a relação jurídica entre os gêneros. Cabe destacar que a proteção à gestante se encontra no capítulo dos direitos sociais da Constituição, erigida a cláusula pétrea no ordenamento jurídico brasileiro.

A lei prevê o afastamento da gestante pelo prazo de 120 dias a título de licença-maternidade e 5 dias para os pais, sem a incidência de contribuições previdenciárias sobre os valores pagos a este título.

Pela sistemática estabelecida na legislação de regência, o salário-maternidade consiste em um benefício previdenciário devido pelo INSS à gestante, a partir do oitavo mês de gestação com a comprovação por atestado médico, ou da data do parto ou da adoção, com o escopo de proteger a gestante nesse período[4], consistindo em uma renda mensal correspondente à sua remuneração integral[5].

Avançando o legislador, buscando equilibrar as condições de igualdade entre homens e mulheres, possibilitou a compensação do valor do salário-maternidade pago às gestantes durante o período do afastamento com as contribuições previdenciárias patronais próprias da empresa[6].

Para fins didáticos, salienta-se que as empresas contribuem para o custeio da Previdência Social com 20%[7] dos valores pagos aos segurados que lhe prestem serviços desde que para remunerar o trabalho, ou seja, excluem-se da base de cálculo das contribuições previdenciárias as verbas pagas em caráter indenizatório.

De fato, o legislador ordinário, ao permitir a compensação dos valores pagos a título de salário-maternidade concedido às gestantes com suas contribuições próprias, acaba por neutralizar o impacto econômico decorrente do afastamento da gestante, estreitando o caráter igualitário entre homens e mulheres previstos no texto constitucional.

Não obstante, para as empresas integrantes do programa Empresa Cidadã, o afastamento pode chegar a 180 dias para a gestante e 15 dias para os pais.

O programa Empresa Cidadã[8] foi criado pelo governo federal em 2008 e tem como característica principal a prorrogação da licença-maternidade por 60 dias, dando maior conforto à gestante nesse período tão importante da vida pessoal e profissional. Como benefício, as empresas optantes pelo referido programa podem deduzir do imposto de renda os valores pagos a título de salário-maternidade.

Entretanto, a Receita Federal tem entendido que sobre os valores que excedem o período de 120 dias da licença-maternidade deve haver a incidência de contribuições previdenciárias, pois trata-se de ganhos habituais dos empregados, respeitando o preconizado no artigo 22 da Lei 8.212/91. Tal entendimento foi externado pela Solução de Consulta Cosit 27/2023.

Para a Receita Federal, a extensão instituída pelo programa Empresa Cidadã estaria fora do escopo da não incidência de contribuições previdenciárias patronais, pois entende que os valores pagos às gestantes vinculados ao adicional decorrente da adesão ao programa mencionado não têm características de benefício previdenciário, logo, entende pela constitucionalidade da cobrança.

Entretanto, a Justiça tem entendido que os valores pagos ostentam mesma natureza jurídica do salário-maternidade, afastando a incidência da contribuição previdenciária sobre esta verba.

O entendimento encontra respaldo na decisão do STF no Tema 72 que fixou a seguinte tese: “É inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário-maternidade”. O ministro Luís Roberto Barroso em seu brilhante voto ilustra:

“Impõe-se gravame terrível sobre o gênero feminino, discriminado na contratação, bem como sobre a própria maternidade, o que fere os direitos das mulheres, dimensão inequívoca dos direitos humanos”.

Em decisões recentes, a Justiça Federal tem reconhecido que os valores pagos a título de salário-maternidade e paternidade pelas empresas integrantes do programa Empresa Cidadã não sofrem a incidência de contribuições previdenciárias.

Sob este norte, os magistrados têm entendido que o período de afastamento adicional tem natureza jurídica idêntica à do salário-maternidade, afastando a incidência sobre tais verbas.

Na prática, caso o entendimento do fisco seja mantido, ocasionando a tributação do valor pago a título de salário-maternidade à gestante com relação ao período de extensão concedido pelas empresas integrantes do Empresa Cidadã, gera-se dois subprodutos nefastos e em sentido contrário ao das diretrizes estabelecidas no texto constitucional.

O primeiro deles consiste em desestimular as empresas a aderirem ao programa que tem por escopo justamente a implementação em seu grau mais elevado da proteção à maternidade.

O segundo, e pior subproduto emanado do entendimento fiscal, é justamente o encarecimento da contratação de mulheres para as empresas, acirrando a desigualdade já existente entre homens e mulheres, o que deve ser fundamentalmente combatido, através da implementação de políticas destinadas a promover justamente a igualdade entre ambos.

Em conclusão, fica evidente que a ânsia arrecadatória do Estado não deve se sobrepor às diretrizes de diminuição das desigualdades entre homens e mulheres, permitindo cada vez mais a erradicação das diferenças e maior inclusão das mulheres na sociedade.

 

Marcelo Santos Scalambrini

Coordenador – Contribuições Previdenciárias


ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JOTA

[1] CF, artigo 5º, inciso I .

[2] PIOVESAN, Flávia. Igualdade de Gênero na Constituição Federal: Os Direitos Civis e Políticos das Mulheres no Brasil.

[3] CF, artigo 6º e 7º, inciso, XVIII.

[4] Artigo 71 da Lei nº 8.213/91.

[5] Artigo 72 da Lei nº 8.213/91.

[6] Artigo 72, §1º da Lei nº 8.213/91.

[7] Artigo 22, inciso I da Lei nº 8.212/91.

[8] Empresa Cidadã foi criado pela Lei nº 11.770/2008 e regulamentado pelo Decreto nº 7.052/2009.

Publicações
Relacionadas

Assine nossa
Newsletter

    Este site utiliza cookies para lhe oferecer uma boa experiência de navegação e analisar o tráfego do site, de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com essas condições.