Responsabilidade tributária: interesse comum, prova de excessos ou infração

23 de novembro de 2022

Artigo publicado originalmente no Conjur.

Este artigo se justifica em razão da prática reiterada por parte do Fisco federal de incluir, no polo passivo dos autos de infração, pessoas físicas sob a acusação de que elas teriam “interesse comum” na situação que gerou o fato gerador da obrigação tributária.

Isso ocorre, muito provavelmente, em razão do Código Tributário Nacional (CTN) não conceituar a expressão “interesse comum”, adotada pelo inciso I do artigo 124. Dessa forma, no silêncio do CTN, coube aos intérpretes do direito a missão de delimitar qual seria o conceito do termo.

Da mesma forma, inadvertidamente, diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas, são inclusos no polo passivo de autos de infração sem que a sua conduta — praticada com suposto excesso ou infração de lei — seja individualizada e comprovada.

A inclusão das pessoas físicas no polo passivo de demandas tributarias, no entender das autoridades fiscais, estaria autorizada pelo legislador nos artigos 124 e 135, ambos do CTN.

Feito esse esclarecimento preliminar, pedimos vênia para definirmos o alcance do artigo 124 do CTN. Para isso, é importante destacar que esse dispositivo legal se insere no Capítulo IV do Código Tributário Nacional, que disciplina o sujeito passivo da obrigação tributária.

Como se sabe, segundo o artigo 121 do CTN, o devedor da obrigação tributária abrange duas espécies, contribuinte ou responsável, a depender do liame que ele mantenha com o fato gerador dessa obrigação.

Vê-se que o artigo 121 define o sujeito passivo da obrigação tributária como a pessoa obrigada ao pagamento de tributo, ou da penalidade pecuniária, denominando-se contribuinte, quando detiver relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador, ou responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, a sua obrigação decorrer de disposição expressa de lei.

Em outras palavras, o sujeito passivo, seja contribuinte, seja responsável, é quem possui o dever de recolher o tributo aos cofres públicos. No caso do responsável, a lei tributária pode atribuir-lhe a responsabilidade em caráter exclusivo, afastando a do contribuinte, ou não, atribuindo-a a este em caráter supletivo, conforme artigo 128 do CTN.

É nesse contexto que deve ser compreendido o artigo 124 do CTN, que não traz em seu bojo hipótese de responsabilidade tributária, mas apenas regula as situações em que duas ou mais pessoas, enquanto contribuintes ou responsáveis, respondem solidariamente pelo crédito tributário [1].

Em razão do menor grau de discussão com relação ao inciso II do artigo  124, daremos foco no inciso I, o qual prescreve que duas ou mais pessoas podem se apresentar na condição de sujeito passivo da obrigação principal, obrigando-se cada uma delas pelo crédito tributário, quando tiverem “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”.

Uma leitura simplista acabaria por conferir um significado amplo à expressão “interesse comum”, mas nada técnico, enquadrando equivocadamente, na hipótese daquele dispositivo legal, quaisquer pessoas que tenham algum tipo interesse. Parece-nos que alguns agentes fiscais fazem essa leitura da norma.

Para eles, não havendo norma legal a respeito do assunto, o inciso I do artigo 124 do CTN permitiria, por exemplo, que fossem exigidos dos compradores, na suposta condição de sujeitos passivos solidários, tributos devidos pelos vendedores, pois a falta de recolhimento desses tributos poderia baratear o custo dos bens vendidos e, consequentemente, permitir a concessão de maior desconto sobre o preço de venda.

Todavia, não é esta a conclusão a que se chega quando aquele dispositivo legal é interpretado com rigor técnico, visto que o termo “interesse comum” possui significado próprio, não se confundindo com o “interesse econômico”.

A esse respeito, são precisos os ensinamentos do professor Luís Eduardo Schoueri [2], para quem:

“Mesmo que duas partes em um contrato fruam vantagens por conta do não recolhimento de um tributo, isso não será, por si, suficiente para que se aponte um ‘interesse comum’. Eles podem ter ‘interesse comum’ em lesar o Fisco. Pode o comprador, até mesmo, ser conivente com o fato de o vendedor não ter recolhido o imposto que devia. Pode, ainda, ter tido um ganho financeiro por isso, já que a inadimplência do vendedor poderá ter sido refletida no preço. Ainda assim, comprador e vendedor não têm ‘interesse comum’ no fato jurídico tributário.”

Assim, para extrair a verdadeira norma jurídica do inciso I do artigo 124, é preciso distinguir situações em que as pessoas possuem “interesse comum” no fato gerador, o que os lhes coloca na situação de sujeito passivo solidário, daquelas que envolvem outros tipos de interesses, que não trazem, a princípio, qualquer consequência na seara tributária.

Embora seja costumeira a prática de excessos por parte do Fisco federal quando da lavratura de autos de infração e termos de sujeição passiva, no nosso entendimento, essa questão encontra-se devidamente solucionada pela jurisprudência administrativa e judicial, tendo prevalecido o entendimento de que o “interesse comum”, a que alude o inciso I do artigo 124, resta caracterizado em situações envolvendo pessoas situadas do mesmo “lado” da relação jurídica, eleita pela lei como fato gerador de determinado tributo, não havendo que se falar em interesse comum se as pessoas ocupam posições distintas naquela relação jurídica.

No plano doutrinário, é possível constatar o significado da expressão “interesse comum” referida pelo artigo 124, I, do CTN. O professor Marcos Vinicius Neder [3] explica que o interesse comum qualificado pelo referido dispositivo pode ser caracterizado pela existência de “direitos e deveres comuns entre pessoas situadas do mesmo lado de uma relação jurídica privada que constitua o fato jurídico tributário”.

Isso porque, em Direito Tributário, a solidariedade diz respeito ao grau de responsabilidade dos coobrigados, sejam eles contribuintes, sejam responsáveis, não sendo meio pelo qual terceiros são incluídos na relação jurídica tributária, conforme já decido pelo STJ [4].

Ou seja, em matéria tributária, a solidariedade nada tem a ver com a prática de atos ou omissões perpetrados por terceiros que possuam algum vínculo com o fato gerador, aplicando-se apenas às situações de pessoas que, possuindo “interesse comum”, têm a aptidão para figurar no polo passivo da obrigação tributária, ambas como contribuintes ou como responsáveis.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme nesse sentido, entendendo que aquela expressão se refere apenas às pessoas que ocupam posição comum na relação jurídica, que constitui o fato jurídico tributário [5].

A jurisprudência administrativa não destoa desse entendimento, na medida em que reconhece que o interesse econômico ou a eventual participação em acontecimentos relacionados ao fato gerador não define o vínculo de solidariedade. Para tanto, é preciso que haja o “interesse comum” na situação que constitui o fato gerador da obrigação tributária, nos moldes acima expostos [6].

Para evidenciar esse entendimento, oportuno mencionar decisão proferida pela 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, no acórdão nº 1402-001.197, o qual decidiu que não há “interesse comum” entre a pessoa jurídica e seus sócios e/ou administradores, o que impede que lhes confira a condição de sujeitos passivos solidários pelos tributos por ela devidos.

Dos precedentes jurisprudenciais na esfera administrativa e judicial, verifica-se o artigo 124, inciso I, do CTN não confere aos agentes da RFB um cheque em branco, permitindo-lhes exigir os tributos não recolhidos pelo sujeito passivo, contribuinte ou responsável, de qualquer pessoa.

Pelo contrário, concluímos que a hipótese descrita naquele dispositivo legal é bastante estreita, restringindo-se às pessoas que possuem “interesse comum” na relação jurídica descrita na hipótese de incidência, assim entendidas aquelas que figuram no mesmo polo dessa relação, e que, por isso, podem responder, solidariamente, pelo crédito tributário correspondente.

Portanto, entendemos que o inciso I do artigo 124 do CTN é aplicável às pessoas que têm qualidade para ser sujeito passivo da obrigação tributária, mas não contempla situações relacionadas a atos ilícitos, que podem ser alcançadas pelo artigo 135 do CTN.

Analisada a expressão “interesse comum” na relação jurídico-tributária, vejamos as hipóteses de responsabilidade tributária dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas, nos termos do artigo 135 do CTN.

Pois bem. A análise do artigo 135 do CTN revela que o seu campo de aplicação é restrito às situações em que as pessoas ali elencadas agem com excesso de poderes ou com infração à lei, ao contrato social ou estatutos.

Deixando-se de lado os incisos I e II do artigo 135, os quais não são objeto do presente artigo, para que alguém possa ser responsabilizado pelo tributo que deixou de ser recolhido, não basta que desempenhem as funções de diretor, gerente ou representante de pessoas jurídicas, é preciso que ajam com excesso de poderes, ou com infração à lei, ao contrato ou estatutos sociais.

Sendo assim, quando da formalização de termos de responsabilidade, os agentes do Fisco devem demonstrar e comprovar que o pretenso responsável tributário, além de exercer aquelas funções, praticou ato ilícito, ou seja, eivado de excesso de poderes, com infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos, e que existe uma relação de causalidade entre esse ato e a infração tributária.

Nesse sentido, a 2ª Câmara da 2ª Turma Ordinária da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais reconheceu que a regra inserta no art. 135 do CTN pressupõe a existência de “prova direta e individualizada” da participação do administrador no ilícito, conforme ementa do acórdão nº 1202-00.198.

Esse precedente administrativo se alinha à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que “inexistindo prova de que se tenha agido com excesso de poderes, ou infração de contrato social ou estatutos, não há falar-se em responsabilidade do sócio a esse título ou a título de infração legal [7].

Ademais, embora o artigo 135 do CTN continue a ser inadvertidamente utilizado pelos agentes fiscais, importante salientar que o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.101.728/SP, submetido ao regime do então artigo 543-C do Código de Processo Civil, decidiu que a responsabilização das pessoas referidas nos incisos I a III do artigo 135 do CTN, notadamente os representantes de pessoa jurídica, só tem lugar quando comprovado que elas agiram com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

Mais do que isso, de acordo com entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça [8], a expressão “infração de lei”, a que se refere aquele dispositivo legal, não diz respeito ao eventual descumprimento da lei tributária, sendo certo que a falta de recolhimento do tributo não acarreta a responsabilidade pessoal daqueles “terceiros”, como, aparentemente, alguns agentes fiscais tentam interpretar.

Desse modo, as pessoas referidas no artigo 135 não podem ser responsabilizadas pelos tributos devidos pela pessoa jurídica pelo cargo que ocupam ou pela função que exercem, mas por atos contrários ao Direito que, porventura, venham a praticar.

Entendendo o Fisco Federal que as obrigações tributárias resultam de atos dessa natureza, deverão justificar a sua posição em elementos de prova de que os administradores da pessoa jurídica agiram com excesso de poderes e/ou contrariamente à lei, ao contrato social ou aos estatutos.

A própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) compartilha desse entendimento há tempos, conforme se verifica na Portaria PGFN nº 180, de 25/02/2010, expedida com o intuito de regulamentar a atuação de seus membros no tocante à responsabilidade de terceiros, a que se refere o artigo 135, inciso III, do CTN.

Analisando a orientação expedida pela PGFN é possível constatar que ela é bastante clara ao determinar que a aplicação daquele dispositivo pressupõe a comprovação da ocorrência dos eventos nele previstos [9].

Vê-se que o entendimento da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional é de que a responsabilidade pelos débitos tributários das pessoas jurídicas pode ser imputada a seus administradores, quando houver provas dos atos praticados com excesso de poderes, contrários à lei, contrato social ou estatutos.

Desse modo, no caso de responsabilidade solidária, em que a obrigação de recolher o tributo decorre de determinação expressa em lei e não da relação direta com o fato gerador do tributo, o lançamento em relação aos responsáveis depende da indicação dos fatos constatados e o exato dispositivo legal que imputa a responsabilidade tributária em decorrência desses eventos.

Inclusive, a Instrução Normativa RFB nº 1.862/18 [10], que trata do procedimento de imputação de responsabilidade tributária no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil, estabelece expressamente que o lançamento de ofício deverá conter “a descrição dos fatos que caracterizam a responsabilidade tributária” e “o enquadramento legal do vínculo de responsabilidade” decorrente de tais fatos.

Além da mencionada IN, a Receita Federal do Brasil também exarou parecer sobre o tema abordado no presente artigo, conforme podemos observar com a leitura do Parecer Normativo nº 4, de 10 de dezembro de 2018:

“A responsabilidade solidária por interesse comum decorrente de ato ilícito demanda que a pessoa a ser responsabilizada tenha vínculo com o ato e com a pessoa do contribuinte ou do responsável por substituição. Deve-se comprovar o nexo causal em sua participação comissiva ou omissiva, mas consciente, na configuração do ato ilícito com o resultado prejudicial ao Fisco dele advindo.”

Sendo assim, ante as manifestações da própria Receita sobre a responsabilidade solidária, não havendo prova de que as pessoas citadas no artigo 135 do CTN tenham praticado atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, que redundaram na ocorrência de fatos geradores, nos parece que há um equívoco na interpretação dos agentes Fiscais ao elencarem os representantes legais da pessoa jurídica nos autos de infração, sem que os requisitos tratados no presente artigo sejam preenchidos.

[1] “Artigo 124. São solidariamente obrigadas:

I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;

(…)”.

[2] Direito Tributário, Saraiva, 2011, p. 476

[3] NEDER, Marcos Vinicius. Solidariedade de direito e de fato: reflexões acerca do seu conceito. In: FERRAGUT, Maria Rita; NEDER, Marcos Vinicius (coords.). Responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2007. p. 42.

[4] Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 446.955/SC

[5] Recurso Especial nº 859.616-RS

[6] Acórdão nº 104-21.662

[7] Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 712.270/DF, de 14/02/2006

[8] Súmula 430: O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente.

[9] “Artigo 2º A inclusão do responsável solidário na Certidão de Dívida Ativa da União somente ocorrerá após a declaração fundamentada da autoridade competente da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ou da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) acerca da ocorrência de ao menos uma das quatro situações a seguir:

I – excesso de poderes;

II – infração à lei;

III – infração ao contrato ou ao estatuto;

IV – dissolução irregular da pessoa jurídica.

(…)

Artigo 4º Após a inscrição em dívida ativa e antes do ajuizamento da execução fiscal, caso o Procurador da Fazenda Nacional responsável constate a ocorrência de alguma das situações previstas no artigo 2º, deverá juntar aos autos documentos comprobatórios e, após, de forma fundamentada, declará-las e inscrever o nome do responsável solidário no anexo II da Certidão de Dívida Ativa da União.

(…)

Artigo 6º Ante a não comprovação, nos autos judiciais, das hipóteses previstas no artigo 2º desta Portaria, o Procurador da Fazenda Nacional responsável, não sendo o caso de prosseguimento da execução fiscal contra o devedor principal ou outro codevedor, deverá requerer a suspensão do feito por 90 dias e diligenciar para produção de provas necessárias à inclusão do responsável solidário na Certidão de Dívida Ativa da União, conforme disposto no artigo 4º desta Portaria.

Parágrafo único. Não logrando êxito na produção das provas a que se refere o caput, o Procurador da Fazenda Nacional deverá requerer a suspensão do feito, nos termos do artigo 40 da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980″.

[10] “Artigo 3º Na hipótese de imputação de responsabilidade tributária, o lançamento de ofício deverá conter também:

I – a qualificação das pessoas físicas ou jurídicas a quem se atribua a sujeição passiva;

II – a descrição dos fatos que caracterizam a responsabilidade tributária;

(…)”.

 

Bibliografia

BIFANO, Elidie Palma. O Planejamento Tributário Internacional e as Boas Práticas de Governança Corporativa nas Empresas Privadas. Revista de Direito Tributário Internacional, ano 2, v. 5, 2007, p.63-82.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Responsabilidade Tributária — Pesquisas Tributárias — Nova Série — 17. São Paulo: RT

NEDER, Marcos Vinicius. Solidariedade de direito e de fato: reflexões acerca do seu conceito. In: FERRAGUT, Maria Rita; NEDER, Marcos Vinicius (coords.). Responsabilidade tributária. São Paulo: Dialética, 2007.

TÔRRES, Heleno Taveira. Regime tributário da interposição de pessoas e da desconsideração da personalidade jurídica: os limites do artigo 135, II e III, do CTN. In: TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe (coords.). Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 22-68.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo, Saraiva, 2011.

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